Os anúncios de contratação internacional de médicos para dar resposta à pandemia deixam-me incrédulo. Há centenas de médicos não especialistas em Portugal que o Estado não só se recusa a contratar como insiste em enviar para o desemprego. Quem tem medo dos médicos não especialistas?
Sou médico não especialista. Terminei o curso de medicina em 2018 e optei por não fazer o exame de admissão à especialidade. Em 2019 fui Interno de Formação Geral (IFG), o antigo Internato Geral/Internato de Ano Comum e tornei-me, em Janeiro de 2020, médico autónomo.
Todos os anos, em Janeiro, uma nova geração de médicos recém formados inicia o seu Internato de Formação Geral, com a duração de um ano. Cerca de um mês antes de terminar o IFG, dá-se a escolha de especialidade, vaga que será ocupada pelos internos desse ano em Janeiro do ano seguinte, após terminarem a sua formação geral. No entanto, de há cerca de 5 anos para cá, as vagas para a especialidade são insuficientes para todos os médicos recém-formados e centenas não têm acesso à especialidade.
A opção do Estado para estes médicos tem sido sempre e apenas uma: o olho da rua. Chegados a 31 de Dezembro, o contrato de trabalho a tempo incerto que une os internos ao Estado é resolvido unilateralmente pelo Estado. Para os que continuam para a especialidade o impacto é praticamente nulo; assinam novo contrato para a formação específica e continuam a trabalhar para o Estado. Mas as centenas de internos que não conseguiram vaga são, simplesmente, dispensados e enviados para o mundo do trabalho precário. Esta tem sido a escolha de vários Governos desde que deixou de haver vagas para todos na especialidade, os médicos não especialistas que acabaram de terminar o seu Internato de Formação Geral são enviados para o desemprego, para engrossar a fileira da mão de obra médica cada vez mais barata e precária.
O ano passado, em 2020, depois de terminar o meu internato e de ver o meu contrato terminado pelo Estado, e não tendo continuado para a especialidade, foi precisamente isso que aconteceu comigo, fui demitido (o contrato a termo incerto caducar é eufemismo para demissão) e inscrevi-me no centro de emprego como desempregado. Porque era isso que eu era, um médico desempregado. Desde então, trabalhei em diversos locais, de centros de saúde a empresas privadas, sempre a recibos verdes, sempre como precário.
Em 2020, reclamei ainda o pagamento da compensação por caducidade de trabalho que me era devida e penso que terei sido o único médico em Portugal que conseguiu ver este direito reconhecido e pago. O Estado não só dispensa os médicos que não entram na Especialidade, fá-lo com a soberba e má fé que o caracteriza e não paga a caducidade de contrato prevista na lei (depois 'admiram-se' de cada vez mais médicos fugirem do SNS...).
O ano de 2020 viu também chegar a pandemia da COVID19 a Portugal mas as minhas esperanças que com isso se assistisse a uma valorização pelo Estado dos médicos não especialistas cairam em saco roto. Repetidamente a Ministra da Saúde diz que não há mais profissionais de saúde para contratar em Portugal. Mas isto é mentira. Se por um lado a degradação das condições de trabalho para os recém especialistas em Portugal leva a que muitos se recusem a continuar a trabalhar para o Estado após terminarem a sua formação específica, por outro existem centenas de médicos não especialistas em Portugal que o Ministério da Saúde recusa repetidamente contratar directamente.
Eu sei porque tentei. Desde Junho de 2020 até Janeiro de 2021, fiz várias tentativas para reforçar a equipa de saúde pública de Torres Vedras. Foram sempre recusadas pela tutela. Cheguei a ser contactado pelos recursos humanos da ARS de Lisboa e Vale do Tejo para formalização do contrato mas depois o meu contrato nunca foi autorizado. A informação que me foi sistematicamente repetida é que só estavam autorizados contratos para técnicos superiores e não para médicos não especialistas. Depois tentei ir para a saúde pública de Torres Vedras sendo pago por bolsa de horas com empresas prestadoras de serviços, ou seja, aceitei ser 'tarefeiro' para ir para a saúde pública. Não fui autorizado.
Escolhi a saúde pública não só por apetência pessoal mas também porque sempre acreditei que era na saúde pública, no teste e rastreio de contactos, que estava a chave para controlar a pandemia. A ministra da saúde, claramente, não concorda, visto ter sistematicamente negado os pedidos dos delegados de saúde para reforço médico das suas equipas. Seria na saúde pública que o investimento em recursos humanos teria mais eficiência, resolvendo a montante os problemas que agora se acumulam a jusante, nos hospitais, de forma tão dramática. O não reforço atempado destas equipas foi, no mínimo, negligente.
Ainda tive alguma esperança que se tivesse feito luz no ministério da saúde quando em Setembro e Outubro de 2020 foram lançados dois concursos para médicos não especialistas pelas ARS do Alentejo e do Algarve (ver imagem abaixo). Mais valia tarde que nunca! Mesmo nestas áreas do país onde há mais dificuldade em conseguir médicos este concursos ficaram praticamente preenchidos.
Mas por razões que a razão desconhece, as ARS de LVT, Centro e Norte nunca fizeram o mesmo, ou seja, nunca fizeram um esforço real para reforçar com médicos não especialistas, uma força de trabalho médico com disponibilidade para ser contratada, os seus gabinetes de saúde pública e não houve nenhum concurso para médicos não especialistas por estas autoridades regionais de saúde.
Mas ainda mais extraordinário do que escolher não contratar é escolher demitir. A 31 de Dezembro de 2020, no início do pico desta nova onda da pandemia, mais uma leva de médicos, cerca de 2000, terminou o Internato de Formação Geral. Desses, certamente mais de 100, desconheço os números exactos, não tiveram vaga para iniciar a formação específica e foram dispensados. Demitidos. E desconheço qualquer iniciativa centralizada para os manter ao serviço. Alguns hospitais mostram abertura, caso a caso, para fazer contrato directo com alguns destes médicos. Mas isso é diferente e não tem o mesmo impacto de haver uma atitude centralizada da tutela para manter em funções estes médicos, oferecendo novo contrato de trabalho ou uma adenda ao anterior. Numa altura em que os trabalhadores da saúde estão sobre requisição civil, com os seus direitos de rescisão de contrato limitados, por exemplo, é difícil de perceber que o Ministério da Saúde tenha dispensado estes médicos.
É por isso com alguma incredubilidade que vejo notícias que querem contratar médicos reformados, médicos estrangeiros, médicos formados no estrangeiro (a quem a ordem dos médicos sempre fez a vida negra), médicos às riscas e aos quadradinhos e eu, médico não especialista, português, formado em Portugal, continuo à espera de poder ser contratado para a Saúde Pública ou continuou à espera que o Governo, simplesmente, lance um concurso a sério de recrutamento a que eu e centenas de outros médicos não especialistas possamos concorrer...
Não existem limitações legais para esta contratação. Os médicos não especialistas têm tabela salarial prevista. E, no entanto, o Ministério da Saúde recusa de forma deliberada e sistemática a contratação destes profissionais. Mesmo quando repete, ad nauseum, que não há médicos disponíveis para contratar, uma mentira, como a resposta aos concursos das ARS Alentejo e Algarve demonstrou.
O Ministério da Saúde escolheu não tentar contratar a nível nacional os médicos não especialistas disponíveis. O Ministério da Saúde escolheu dispensar os médicos não especialistas que terminaram a sua formação geral a 31 de Dezembro de 2020. Os apelos a médicos internacionais são um fait diver de um ministério que nunca quis, verdadeiramente, reforçar os seus recursos humanos com médicos disponíveis. É propaganda para consumo interno, para dizer que tentaram, fizeram tudo, para contratar médicos... mas não havia.
É mentira. Havia e há. É uma escolha política não os contratar. Assim como é uma escolha política não respeitar os médicos do SNS de forma a travar a sangria de recursos.
É tudo propaganda, algo em que este ministério é particularmente bom.
O Vírus, esse, não se vai em propaganda e as mortes acumulam-se...
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