domingo, 9 de janeiro de 2011

Um Zangão na Família

Sentar-me ao lado do cortiço a sentir o cheiro que emanava do seu interior e imergir-me na vibração de centenas de asas foi um ritual a que me habituei no único ano em que tive abelhas. Viria, nesse Outono, a ter o prazer de provar o mel que escorria dos favos enquanto os espremia nas mãos, ouro líquido com uma pujança de aroma como nunca tinha sentido em nenhum mel. O cortiço tinha sido abandonado de um dia para o outro pela colónia, o que me facilitou a decisão de o abrir e apoderar-me dos despojos.

Uma tarde, quando me aproximei do cortiço, vi duas estranhas abelhas no exterior. Maiores que o habitual, foram os seus olhos negros e enormes que me chamaram a atenção. Demorei algum tempo a perceber que eram zangões. São tidos como indolentes, um desperdício dos recursos da colmeia, um mal necessário para a futura inseminação das jovens rainhas. Curiosamente, não têm ferrão. Mas, sabe-se agora, uma colmeia não funciona sem eles. De alguma forma a sua presença, a sua necessidade em serem tratados pelas obreiras que os alimentam, ajuda a manter a integridade do todo.

Praticamente toda a minha vida houve um Zangão na família. Grande, enorme, sem ferrão, que sempre precisou de ser tratado e alimentado, de ser posto na rua quando precisa de ar e levado para dentro quando apanha sol a mais. Senta-se à mesa connosco e dá-nos a perceber quando a tensão passa do nível saudável, levantando-se e saindo. Passou por vários períodos da sua doença, uma esquizofrenia que rebentou quando andava na tropa, e que de episódio em episódio transformou o meu tio no nosso zangão. Não foi sempre inerme, mas nos últimos anos alcançou um equilíbrio que lhe permitiu exercer na minha família o seu papel regulador.

Houve, no entanto, resquícios do seu passado, de um passado mais turbulento, de uma fase mais aguda da doença e da sua negação, até que foi deixado demasiado incapacitado para a conseguir negar, ele e todos nós, que ficaram. O seu estado psiquiátrico estava há anos estabilizado, e é o resto do seu corpo que agora o atraiçoa. Pecados antigos têm sombras compridas.

O seu papel na nossa família nunca foi bem entendido. Como o papel dos zangãos numa colmeia ainda não é bem compreendido. Só se sabe que quando se retiram todos os zangões de uma colónia, a mesma se torna crescentemente disfuncional. Agora, prestes como estamos a perdê-lo, percebo melhor o seu papel durante anos em ajudar a manter a minha família unida, em ser o elefante na loja de cristal que nos ajudava, sem nós sabermos muito bem como, a navegar por terrenos frágeis. O zangão, que poderia ser muita vezes tido como empecilho ou parasita, foi, afinal, o espelho de todos nós, mostrou o nosso pior e o nosso melhor. É uma peça essencial do baralho. E vou sentir muito a sua falta.

Prestes a perdê-lo, sinto-me estranhamente livre para perceber o quanto amo este meu tio afável, com um sentido de humor peculiar, que durante 30 anos tem vivido com uma doença que lhe atou o cérebro e a vida, num nó impossível de desfazer porque sempre que se soltava um laço alguém se ocupava de o fechar de novo, movido pela ignorância ou 'caridade'.

Lembro-me dele antes da doença. Eu teria 3 ou 4 anos, e recordo-me  de estarmos a brincar com  a pantera de espuma às riscas que não largava. Uma vez levou-me de carro por Lisboa. E na Avenida da República de então fez ultrapassagens pela direita e pela esquerda numa vertigem premonitória.

Sorrio, porque é isso que temos que fazer na vida. Vou fechar a loja e dar-lhe um beijo ao hospital.

2 comentários:

  1. A Natureza é Sábia!Encontra-se em constante progressão harmónica! Por algum motivo nascemos, morremos... semeamos, colhemos... Aprende-se a Viver, muitas vezes com dor, mas depois com um sorriso, um agradecimento... das experiências, as vivências, com a partilha.
    O que faz pensar que uma Familia é como uma Sociedade, todos os seus elementos têm um motivo para estar, ser...

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  2. Obrigado pelo comentário. As próximas horas, dias, serão dificeis e o seu comentário ajudou. Obrigado.

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