sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Em defesa de uma Mulher

O sentimento de satisfação demonstrado em jornais e blogs portugueses pela trágica morte de parto de uma jovem mulher na Austrália deixa-me profundamente perturbado com a falta de empatia, com a crueldade fácil, e com o terrível paternalismo machista que demonstra.

Caroline Lovell, uma fotógrafa de 36 anos, mãe de uma filha e grávida de outra, morreu devido a complicações de parto. Decidiu ter a filha em casa, com o apoio de uma parteira profissional, algo que milhares de mulheres fazem por todo o mundo, por escolha, e não por falta de acesso ao hospital. A decisão de dar à luz em casa não foi um acto irreflectido; a gravidez não era de risco, o primeiro parto já tinha sido em casa e tinha corrido bem; a gravidez tinha sido medicamente assistida; o parto seria acompanhado por uma profissional.

Infelizmente, e tragicamente, após o nascimento da bebé a saúde da mãe deteriorou-se rapidamente - talvez devido a uma hemorragia grave - e a mãe teve uma paragem cardíaca. Foi reanimada e transportada para o hospital onde viria a falecer no dia seguinte (e não morreu em casa como muitas notícias dizem).

Esta é a primeira morte de que há notícia nos últimos anos na Austrália de uma parturiente que deu à luz em casa. Um estudo anteriormente efectuado no Reino Unido em que se inclui 6000 partos em casa resultou numa taxa de mortalidade da mãe de 0%. Os partos em casa estão a crescer em toda a Europa, sem aparente riscos acrescidos, apesar de novos estudos puderem vir a demonstrar o contrário. Não estamos portanto a falar de alguém que recusou uma transfusão sanguínea por crenças religiosas, ou que decidiu não vacinar os seus filhos. Estamos a falar de uma mulher que tomou o controlo sobre a sua vida de uma forma instruída.

Porque é, então, a morte desta mulher notícia tão comentada? É que Caroline Lovell reivindicou durante a sua vida o direito das mulheres que querem dar à luz em casa a terem mais apoio do Estado e alertou uma comissão de saúde sobre este tema, em 2009, para a possibilidade da posição do Governo Australiano poder perigar a vida de mulheres que decidissem dar à luz em casa. Pedia, entre outras coisas, maior apoio para as parteiras profissionais, que imagino se vêem obrigadas a trabalhar de forma exclusivamente privada e sem qualquer apoio ou relação com o restante serviço de saúde. Esta suposta ironia, de ter lutado por um direito e morrido a exercê-lo mostrou-se irresistível por todo o mundo.

Mas em Portugal, o julgamento desta mulher, que dispôs da sua vida da forma que achou melhor, foi em vários locais bastante curto e unânime. A mensagem implícita foi clara. "Irresponsável." "Pagou com a vida a sua estupidez". Era como estar a ler um jornal na Arábia Saudita a comentar a morte de uma mulher ao volante meses depois de as mulheres terem ganho o direito a conduzir.

Afinal, há maior pecado em Portugal do que desafiar o status quo e lutar pelo direito a decidir sobre si, sobre o seu corpo? Haverá maior pecado do que atrever-se a pôr a cabeça acima do parapeito, pecado redobrado se a cabeça for feminina? Onde é que já se viu, uma mulher a querer levar a sua avante, a desafiar de forma instruída, a opinião vigente sobre os partos 'terem' de ocorrer em hospitais? Imagine-se, uma mulher a querer ser dona do seu corpo, a querer dispor de um dos momentos mais importantes da sua vida da forma que achava melhor para si?

"Teve o que merecia."  foi um sentimento demasiado comum que vi ligado a esta notícia.

Uma mulher jovem, mãe de dois, perdeu a vida de parto. É uma tragédia.

Pode esta tragédia servir para renovar o debate sobre a segurança dos partos em casa? Após mostrar-se o respeito devido à vítima, pode. (Mostrar o devido respeito não é chamar à notícia triste e depois desancar a vítima.)

Como é que alguém pode tirar deste acontecimento isolado qualquer elação ou ilação que não seja fomentada por despeito, inveja, crueldade e uma incrível vontade de ditar aos outros (em especial às mulheres) o que é certo e o que é errado?

Mas há quem fique satisfeito com a desgraça desta pessoa. E isso é quase igualmente trágico.


2 comentários:

  1. A estupidez humana no seu melhor. Não me surpreende saber disso. O problema é que as pessoas que comentam isso de que quando dizem que ela teve o que mereceu, também estão a dizer que as filhas mereciam ficar sem mãe. Enfim.

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  2. Não sabia desta noticia. As pessoas são mesmo cruéis. Parece que só ficam felizes a desfazer das outras. Sinceramente

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