domingo, 25 de abril de 2010

Quanto vale o trabalho de alguém? O conceito de ordenado mínimo para viver (minimum living wage)

Ao iniciar esta minha aventura chamada Loja de História Natural pensei que queria trazer para a gestão do negócio alguns princípios que me são caros. Poucos me serão tão caros quanto o sentido de Justiça nas suas duas vertentes, legalidade e igualdade. A questão da justiça no trabalho é o tema deste post algo pessoal. O dia 25 de Abril é um bom dia para falar nisto.

O negócio chegou a um momento em que não mais consigo fazer tudo sozinho, por falta de tempo e por falta de energia. Chegou a altura de chamar alguém a colaborar comigo. Esta decisão deparou-me com uma questão essencial: que tipo de vínculo laboral ter com um/a colaborador/a e quanto pagar? Entro em território muito complicado, como todos nós sabemos, um conflito evolucional tão antigo como as sociedades humanas, entre quem emprega e quem é empregado. Para encontrar a minha solução para estas duas questões quis, primeiro, respeitar a legislação existente, e de seguida respeitar a minha forma de estar na vida.

Respondamos à primeira pergunta primeiro, qual o tipo de vínculo laboral, sem pudor: recibos verdes. O negócio está ainda numa fase em que me é impossível prever quais as necessidades reais de trabalho, dependendo as mesmas do que eu consiga ou não fazer sozinho. Procuro alguém para colaboração esporádica, para serviços diferentes como a tradução para português da informação sobre as caixas-ninho, para inserção de dados sobre os estoques no sistema, e para estar na loja sempre que eu não consiga. Procuro flexibilidade total, quer em número de horas, quer em vínculo laboral. Por outro lado, ofereço flexibilidade total. A pessoa que colabore comigo não me deverá obediência, não terá que cumprir horários, poderá continuar à procura de outra posição e será completamente livre para decidir que tarefas quer ou não realizar. Nenhum lado terá de dar pré-aviso do final da colaboração.

Tenho plena consciência que os recibos verdes são usados de uma forma unilateral na maior parte das vezes: o empregador não quer vínculos laborais nem pagar segurança social e quer mão-de-obra mais barata, mas exige responsabilidades do trabalhador como se fosse contratado. Este não será o caso aqui.

Mas deixem-me esclarecer outra questão: eu acredito na flexibilização do mercado de trabalho. Acredito no direito ao empregador em despedir sem justa causa, direito ainda não existente em Portugal, desde que com este direito venham uma série de deveres associados. Penso que em Portugal o uso e abuso dos recibos verdes deriva também da enorme rigidez das nossas leis laborais. Em vez de promoverem a segurança no trabalho, as nossas leis conduziram a um situação de enorme instabilidade, com abuso dos contratos temporários, dos recibos verdes, e despedimento antes do necessário para não deixar uma pessoa entrar no "quadro". E quando querem que alguém saia, muitos patrões fazem guerra psicológica aos empregados, forçando-os a escolher entre a sanidade mental ou um emprego.

Mas com a liberdade de despedir tem de vir também um custo, custo esse já previsto parcialmente na lei - indemnização compensatória - mas que é escamoteado pelo empregadores. Vejo, por isso, com muitos bons olhos a introdução de descontos obrigatórios para a segurança social por parte do empregador de alguém a recibos verdes, medida infelizmente adiada mais um ano.

E quanto ao custo? Esta é outra questão que não é simples. Vejamos, por exemplo, o verdadeiro custo de uma hora de trabalho de alguém a ganhar o ordenado mínimo, uma questão importante porque quem é pago a recibos verdes recebe, por tarefa efectuada, cujo custo é medido pelo número de horas necessárias para completar a tarefa. Ao mesmo tempo o ordenado mínimo não prevê um valor mínimo a pagar a alguém a recibos verdes, mas devia prever.

O discurso sobre o ordenado mínimo está profundamente viciado por ambos os lados do conflito, patrões e sindicatos. O ordenado mínimo nacional neste momento é de 475€ por mês. Mas não é esse o custo para um empregador: um empregador paga o ordenado 14 vezes num ano (subsídios de férias e Natal) e recebe em volta 11 meses de trabalho; paga subsídio de refeição por cada dia trabalhado (suponhamos 3,5€); paga, aproximadamente, um quarto do valor da remuneração para a segurança social, seguro de acidentes de trabalho e medicina no trabalho (23,75% + 1% + 0,25% = 25%); e se o trabalhador estiver a termo e não renovar o contrato paga mais um mês de ordenado por cada ano trabalhado. Isto equivale a pagar, efectivamente, o correspondente a 801,80€ por mês por um trabalhador, muito diferente dos 475€ de que se fala. O que o trabalhador recebe continua a ser o mesmo, e pouco, mas faz sentido que se discutam as remunerações em valores anuais, como é feito em muitos países, permitindo um discurso racional sobre estas questões.

Os 475€ transformam-se em 9146,55€ pagos pela entidade patronal num ano (x14= 6650€, com descontos x1,25= 8312,5€; 238,3 dias de subsídio de refeição x 3,5€ = 834,05€), o equivalente a 4,80€ por hora efectivamente trabalhada. Mas se um trabalhador estiver a prazo tem direito ainda à indemnização, sendo que esta não está sujeita a descontos. Ou seja, o preço legal da hora de trabalho a termo, conforme eu calculo aqui e não conforme a lei manda calcular, deveria ser de 5,05€ hora ((9146,55 + 475)/(238,3 dias x 8 horas)). Deveria ser estabelecido que este é o equivalente do ordenado mínimo nacional para alguém a recibos verdes: 5,05€ à hora.

Isto significa que nunca poderia pagar menos de 5,05€ por hora de trabalho a recibos verdes. Não porque tenha alguma obrigação legal, mas porque penso que é justo eu assumir os mesmos custos para o trabalhador a recibos verdes que assumiria para um trabalhador a prazo. Este custo horário inclui um proporcional de todas as obrigações legais do empregador.

Mas é este ordenado o suficiente? Penso que não. Vejamos as contas do outro lado, quanto é que o empregado leva para casa anualmente? Sobre o que ganha mensalmente o empregado desconta obrigatoriamente 11%, não fazendo descontos sobre subsídios de refeição. Então o empregado leva para casa 6752,55€ num ano, uma média de 562,71€ por mês, divididos entre meses que leva 482,33€ (10 vezes) e dois meses que leva o dobro 964,65€.

Se se considerar que o direito a férias pagas é essencial - como eu considero - para qualquer pessoa, então o que conta é o valor mensal. No entanto, considero que o subsídio de Natal não devia ser obrigatório. Se pensarmos desta forma, então a remuneração mínima de 475€ deveria passar a 511,54€ vezes 13 meses e não a 475€ vezes 14 meses. O trabalhador não sairia prejudicado, havia apenas uma adaptação do discurso.

A questão agora, para mim, é avaliar qual o valor que considero o mínimo justo para um trabalhador levar para casa. Não o mínimo legal, esse já vimos qual é, mas sim o mínimo para uma pessoa viver condignamente. Chamemos-lhe o ordenado mínimo para viver, baseado no minimum living wage a ser implementado em países como o Reino Unido, vários estados dos Estados Unidos da América, na Suiça, etc. Este movimento nasce da necessidade de não nos limitarmos ao que é legal quando se decide quanto deve ganhar uma pessoa. A pergunta não deve ser o que é legal, mas o que é suficiente para que uma pessoa possa pagar por alojamento, nutrição, roupas, transporte, saúde e recreação e manter qualidade mínima e condigna de vida. Isto significa que este valor não será o mesmo em todo o país, sendo maior nas grandes cidades, com maiores custos de alojamento, por exemplo.

E qual deverá ser o ordenado mínimo para viver em Portugal, e, mais especificamente, em Lisboa? Não sei, não fiz essas contas, mas não me parece que o valor do nosso ordenado mínimo seja suficiente. Mas quanto mais? Mais 25€? Mais 50, 100€?

Gostaria muito de ver estudos sobre esta questão. Eu decidi estabelecer como o ordenado mínimo para viver a pagar na loja os 600€ mensais, mais os outros direitos todos que enumerei antes. Isto corresponde a 6,25€ por hora de trabalho efectivo a recibos verdes, sendo que as obrigações legais de quem passa recibos verdes são menores do que quem está a contrato, ou seja levam mais dinheiro limpo para casa, mas perdem regalias sociais. Mas essa já é uma escolha de quem passa o recibo, que pode optar por pagar mais ou menos segurança social. Ao mesmo tempo, irei pagar todas as regalias a que um empregado a termo teria direito mas com menos contrapartidas. Mas também com menos obrigações (pré-aviso, por exemplo). Em termos comparativos, 6,25€ por hora equivale a 1083,33€ pagos ao trabalhador a recibos verdes por mês trabalhado, valor antes do abatimento de despesas com segurança-social, etc., por parte do trabalhador.

Para o negócio isto é um custo bem real. Mas não posso manter um negócio aberto se isso implicar sacrificar o que é justo. E penso que este valor é justo. Continua a ser baixo, mas penso ser superior ao que se paga em grande parte dos locais que farão competição com esta loja.

Espero que os nossos clientes também venham a perceber que os descontos que tanto se procura online dependem muitas vezes de uma mão-de-obra excessivamente mal paga. Somos nós, na maneira como gastamos o nosso dinheiro, que decidimos o mundo em que queremos viver.

Espero poder contribuir para a discussão destas questões, para o início de uma campanha em Portugal por um ordenado para viver, em oposição a um ordenado para sobreviver. Porque ninguém se deve limitar ao que é legal. Cabe aos Estados estabelecer certos mínimos de comportamento. Cabe aos indivíduos fazerem escolhas pessoais e não esperarem que o Estado tudo decida e tudo dite.

Espero também conseguir fazer singrar o negócio mantendo respeito pelos meus princípios pessoais. Nem sempre está a ser fácil.

2 comentários:

  1. Nunca imaginei um empregador a questionar-se sobre a justiça salarial pelas duas ópticas: a de si próprio enquanto empregador e a do trabalhador. Só por isso os meus mais sinceros Parabéns pelo esforço!!

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  2. Muito obrigado! O texto acaba por ser algo confuso, mas tornou-se numa referência para mim para tomar decisões nesta área.

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