terça-feira, 1 de junho de 2010

Se os livros fossem dinheiro... ou selos.

Imaginem, por um momento, que a entidade que gere o serviço de Multibanco passava a cobrar ao público uma taxa por serviço prestado. Agora imaginem que a taxa cobrada variava conforme o banco: os clientes dos bancos maiores pagavam menos, os dos bancos menores pagavam mais. Tudo, supostamente, de acordo com as leis do mercado: maiores bancos, mais clientes, melhores preços.

Seria possível este cenário em Portugal? Não. Entre Banco de Portugal, Assembleia da República e Governo, muitas vozes se levantariam para garantir o igual acesso a um serviço considerado essencial, para evitar concentração de mercado e perda de competitividade no sector.

Agora imaginem que os Correios de Portugal passavam a cobrar mais portes para enviar um carta de Lisboa a Bragança do que para enviar uma carta para Coimbra. Seria natural, maior distância, maior custo. Mas seria possível? Também não. O custo de enviar uma carta tem de ser igual para todo o país. Mais uma vez para evitar diferenças no acesso aos serviços em todo o território e impedir vantagens para quem está próximo dos grandes centros urbanos.

E agora façam o raciocínio inverso. Imaginem que as editoras e distribuidoras de Portugal tinham que fornecer os seus livros ao mesmo custo base a todas as livrarias de Portugal. Da Fnac ou Letra Livre, em Lisboa, à Arcádia Lusitana, em Bragança, o custo do livro para a livraria seria o mesmo. Seria possível? Claro que sim.

E seria desejável? Também penso que sim. Os livros não são quaisquer artigos, e tal é reconhecido na taxa inferior de IVA que é aplicada a um livro, a mesma que é aplicada a bens de consumo essenciais, como o pão. Acredito por isso que as condições de fornecimento deste bem também devem ser reguladas.

O que se passa neste momento é o desaparecimento por todo o país das livrarias de proximidade. Estas livrarias, normalmente fornecidas com descontos de 25-30% sobre o preço de capa, não conseguem competir com as grandes cadeias de livrarias que asseguram descontos de mais de 40%, podendo fazer descontos aos seus clientes que as outras livrarias não podem se quiserem sobreviver de porta aberta. E muito menos conseguem competir com feiras do livro, montadas com apoios públicos, onde os descontos ao público chegam aos 50%.

E esta questão não é nova. Nos EUA, esse bastião do capitalismo, entrou em vigor em 1936 o Acto anti-cartel Robinson-Patman que regula todo o sector retalhista. Este Acto proíbe produtores e distribuidores de darem tratamento preferencial a certos clientes e não a outros, se o efeito desta discriminação resulta na diminuição da competição e em danos reais a competidores. Descontos por volume de negócio apenas são permitidos se reflectirem diferenças mensuráveis no custo de venda do produto. Mas, nestes casos, as condições de desconto têm de ser iguais para todos. A intenção é, claramente, evitar práticas que diminuam a competição.

Ao abrigo deste Acto, a American Bookseller Association (ABA) tem, nas últimas duas décadas e na defesa dos interesses dos seus associados, processado  com sucesso várias editoras e distribuidoras por limitarem vantagens no acesso aos livros a apenas alguns (grandes) retalhistas. A própria ABA foi recentemente chamada a depor perante o Congresso dos EUA para dar testemunho da sua experiência neste combate anti-cartel.

Agora pensem na realidade nacional. Temos editoras a fornecer grandes cadeias de livros com enormes vantagens em relação às pequenas livrarias, resultando numa clara manipulação da competição, diminuição do número de livrarias independentes e concentração crescente do mercado. De tal forma que as grandes cadeias, neste momento, impõem às editoras descontos mínimos. E as editoras, de forma masoquista e com instintos suicidários, aceitam.

E temos editoras que simplesmente não fornecem de forma atempada. Aqui na Loja de História Natural estamos, por exemplo, há dois meses à espera que a Leya e a distribuidora Bertrand se dignem a abrir-nos conta de cliente (mas sem grande stress, investimos o dinheiro em quem quer vender).

Não há sequer uma tentativa de esconder práticas que têm, claramente, consequências na concorrência.

Existe alguma legislação em Portugal equivalente a este acto anti-cartel estadunidense? Foi com este fim que foi criada a Alta Autoridade para a Concorrência? Se sim, porque ninguém intervém no que se passa no mercado do livro em Portugal (e estou certo que noutros), onde reina a arbitrariedade, com resultados, a meu ver, muito nefastos na competição?

Porque é que a APEL - Associação Portuguesa de Editores e Livreiros não se manifesta? (esta é uma pergunta retórica, basta olhar para as feiras do livro para perceber que a APEL preocupa-se primeiro com as editoras em vez de tentar assegurar um equilíbrio entre o interesse de ambas as partes)

Estas questões são essenciais se quisermos assegurar um mercado livreiro competitivo e impedir que três ou quatro gigantes monopolizem o mercado do livro.

Mas os consumidores também não escapam incólumes destas questões. Há que votar com a carteira, algo que em Portugal não gostamos de fazer. De nada serve adorar a  Trama para de seguida ir a correr comprar com desconto directamente à editora na feira do livro. Ou descobrir um livro na Poesia Incompleta para de seguida o ir encomendar à Fnac. Se quisermos livrarias abertas todo o ano, não chega usar as mesmas como meros expositores de livros, há que apoiar com o nosso dinheiro e não chorar, simplesmente, quando se perde mais uma livraria independente.

4 comentários:

  1. Acho piada a todo este torneio em volta de livrarias e editoras, porque invariavelmente o padre chega a brasa à sua sardinha. Por mais válidos que sejam os seus argumentos, há que sopesar os ganhos e as penas de todos os intervenientes na produção de um livro: escritores, tradutores, revisores, paginadores, capistas, ilustradores e não só editores e livreiros. Porque se assim fizermos, ganhando uma certa distância, inteirar-nos-emos que o preço de um livro novo em Portugal é atroz, e desse muito dinheiro que é pedido, escritores, tradutores, revisores, paginadores, capistas, ilustradores, afinal os responsáveis pelo produto que é enquadrado e comerciado por outrem, ficam com uma mísera fatia. Quais as razões para este problema? Há dinheiro ou não há dinheiro? Há calotes? Há burlas? Como é que as Obras de Completas de Shakespeare, um calhamaço de capa dura, chegam a Portugal importadas e são vendidas a 7 euros, e depois qualquer livro em Portugal publicado se acerca dos 20? E a carteira dos leitores, também se quantifica? É melhor que sim. Porque um leitor dedicado, um bibliófilo, muito raramente dá 20 euros por um livro. Porque com esse dinheiro podia arrebanhar de 4 a 10 livros para a sua biblioteca, em segunda mão ou em feiras. É uma questão de economia. E se as vacas são magras, não venham gozar com o pobre vagabundo.

    Para pôr a questão doutra maneira:

    Quantas editoras, livrarias e distribuidoras enriquecem em Portugal? E se há tantos intermediários a lucrar com o produto de quem trabalha, porque não juntar as três, num trabalho cooperativo, para fazer preços mais baratos e ainda assim pagar mais uma esmolinha aos outros colaboradores supra-mencionados? E porque não juntarem-se escritores, revisores, paginadores, ilustradores, capistas, numa única empresa, distribuindo mais equitativamente os dividendos? Ideias precisam-se.

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  2. Caro Vagabundo,

    Uma das razões, a meu ver, do aumento dos preços dos livros em Portugal deriva das editoras terem iniciado enormes descontos a algumas cadeias de livrarias que se tornaram as suas principais clientes. Para poder oferecer o desconto acrescido, aumentaram os preços dos livros.

    Pense-se assim:

    Um livro que custava 10€ ao consumidor era dividido em 7€ para a editora/distribuidora (que depois dividiam esta soma pelos outros intervenientes) e 3€ para a livraria (que tinha um desconto sobre o preço de capa de 30%).

    De repente algumas cadeias exigiram descontos de 40 a 45%. Resultado, as editoras aumentaram os preços para 12€. Estas livrarias passaram a ganhar à volta de 5€ com a venda do livro e a editora manteve o ganho de 7€. Mas o consumidor passou a pagar 20% mais! Em vez de 10€ passou a pagar 12€. E as editoras mantiveram o desconto de 30% às pequenas livrarias que deixaram de conseguir competir em pé de igualdade com as grandes cadeias.

    Resultado? As editoras ficam ainda mais dependentes das grandes cadeias, que impões descontos maiores, que levam as editoras a aumentar o preço de venda ao público.

    Isto no que toca ao que afecta uma livraria pequena, como é a nossa. E garanto-lhe que não são as pequenas livrarias que estão a lucrar com este mercado.

    Já a questão de divisão dos proveitos, disso não percebo nada.

    Obrigado pela participação. Precisam-se de facto de ideias.

    Cumprimentos,

    Rui Pedro Lérias

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  3. Mas nesse caso, meu caro, porque é que os pequenos livreiros não voltam a esse preço anterior, de 10 euros, recusando-se a vender o livro a 12 euros no retalho? E mesmo desses 10 euros, já reparou o que calha ao autor? 1 euro. Já o livreiro leva 3 vezes mais. Porquê? Por fazer de simples intermediário? Lucra 200% mais. Já mais do que muitos estabelecimentos. Para além de que é um bem não-perecível, se for cuidado por gente dotada de senso-comum. Ah, espere, que se os escritores recebessem alguma coisa de jeito, e se tivessem vagar suficiente para escrevinhar uns pensamentos, esta merda centrifugava. E porquê 10 euros e não 5? Porque se vendia mais e gastava mais papel, não era? Parece-me básico que uma edição mais barata venda mais, muito mais do dobro do que uma edição cara. A não ser que andemos aqui a almejar uma população de elite, a contar pelos esbanjamentos, abastada. Vamos é pedir dinheiro emprestado ao banco para comprar livros, já que as bibliotecas só abrem para meninos de escola, velhos e desempregados.

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  4. Caro Vagabundo, o custo de manter uma porta aberta é muito superior ao que imagina. Um estudo feito sobre esta questão mostra que uma livraria não consegue manter-se aberta com margens inferiores a 43% (ou seja, 30% de desconto sobre o preço de venda ao público). Se uma pequena livraria vende-se a 10€ um livro que compra a 8,4€ (para usar o mesmo exemplo, lembre-se que os 7€ de custo são para as grandes cadeias, para os pequenos o custo subiu para 8,4€) irá, pura e simplesmente, à falência (é uma margem de 19%, um desconto sobre preço de venda ao público de 16%). E é o que tem acontecido às pequenas livrarias. Estão a ir todas à falência.
    como lhe disse, as questões sobre os direitos de autor não conheço, não trabalho enquanto editora nem conheço essa realidade.
    Mas pagar renda, ordenado, contabilidade, água e luz, sistema de facturação, etc., etc., todos os meses, essa realidade conheço-a bem. Os lojistas arriscam muito para ter a porta aberta. Se não compreende essa realidade, é pena.

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