terça-feira, 7 de março de 2017

A PrEP, o CheckPointLX, e a promoção da medicalização do sexo entre homens


(Adenda: Bruno Maia e Maria José Campos, clínicos responsáveis pela forma como a PrEP estava a ser trabalhada pelo CheckpointLX, sairam alguns meses depois de eu ter escrito esta crítica. O CheckpointLX passou, felizmente, a ter uma posição bem mais sensata depois da saída destes dois médicos. Mas a minha avaliação à situação na altura mantém-se.)

A promoção à PrEP por parte do CheckPointLX comprometeu a minha confiança no seu trabalho para a prevenção da infecção por HIV . Deixo aqui a minha opinião.
  
Imagem da campanha de promoção à PrEP pelo CheckPointLX. O valor 99% é um valor teórico e nunca foi concretizado em nenhum estudo observacional.

Tenho sido, ao longo dos anos, um apoiante do trabalho feito pelo CheckPointLX (CPLX). Estive presente na inauguração, divulguei os seus serviços por amigos, conhecidos e desconhecidos e usufruí eu próprio dos mesmos. Foi um projecto válido e importante.

Mas a forma como têm promovido desde 2015 a profilaxia pré-exposição (conhecida pela sigla anglo-saxónica PrEP), fornecendo informação enganadora, incentivando e facilitando, sem critério, o acesso (ilegal) de todos que a queiram tomar e diminuindo o papel do preservativo na luta contra a SIDA, erodiu a minha confiança na sua capacidade técnica. É inconcebível que considerem ser boa ideia que 80% dos homens que têm sexo com homens (HSH) tomem a PrEP, no que equivaleria a uma massificação da medicalização do sexo entre homens, como se fosse uma doença. É igualmente condenável que defendam que a PrEP pode substituir o preservativo na prevenção do HIV.

Nesta minha publicação vou questionar algumas das afirmações feitas no texto da campanha de promoção à PrEP do CheckPointLX.

Considero que se tornaram um problema na luta contra a infecção por VIH na comunidade de homens que têm sexo com homens (HSH). Neste texto pretendo expor algumas das questões que as suas intervenções públicas me levantaram e que me levaram a pensar assim.


Preservativo 70% eficácia, PrEP 99% eficácia ? Manipulação de informação.

Em Junho de 2016, numa publicação no Facebook do CheckPointLX afirmava-se que a PrEP é 99% eficaz na prevenção da infecção por HIV e que o uso de preservativo no sexo anal era 70% eficaz. Afirmava-se, ainda, que a PrEP podia substituir o preservativo na prevenção do HIV por ser mais eficaz. Fiquei surpreso e quis verificar de onde vinham estes resultados.

Rapidamente percebi que as percentagens estavam a comparar coisas diferentes, que nenhum estudo tinha comparado directamente o preservativo com a PrEP e que não existe nenhuma recomendação científica a dizer que a PrEP pode substituir o preservativo na prevenção do HIV. Recomendo a leitura desta publicação na rede para uma boa análise sobre esta questão. Tento aqui fazer um resumo recorrendo à referida ligação, a vários dos artigos científicos nela citados e outra literatura que pesquisei.

Os dois estudos na Europa que analisaram a eficácia da PrEP em HSM, o PROUD e o IPERGAY, apresentam um resultado médio de 86% de eficácia da PrEP na redução de risco de infecção por VIH nos homens que relataram boa adesão à medicação quando comparados com homens que tomavam placebo. Outro estudo decorreu em África e alcançou um resultado médio de 92% de redução de risco nos homens que relatavam uso consistente de preservativo e da PrEP comparados com os que não usavam o preservatico nem tomavam a PrEP.

De onde vem então o valor de 99% de eficácia da PrEP? Em modelos teóricos, quando apenas se inclui na análise os homens com concentrações de fármaco elevadas no organismo e se extrapola o resultado para todos os participantes, o valor da eficácia da PrEP pode chegar aos 99%. Desta forma, a eficácia de 99% citada pelo CPLX resulta não de um estudo puramente observacional mas de um cálculo de qual seria a capacidade teórica da PrEP em prevenir infecção se todos os participantes tivessem uma certa concentração de fármaco nas mucosas, algo que na vida real não acontece. Considero por isso que 99% é um valor que induz em erro, que não corresponde a um resultado real – é um valor calculado por um modelo estatístico e não medido - e que o valor de 86% do estudo PROUD e IPERGAY é um valor mais real.

Quanto ao preservativo, a eficácia de 70% apresentada resulta de uma análise retrospectiva sobre a eficácia isolada do preservativo na prevenção da infecção por HIV no sexo anal entre homens sero-discordantes – em que um é positivo e o outro é negativo, o que cria um viés negativo para o preservativo. Esta análise foi obtida a partir de dados de estudos que decorreram entre 1998 e 2001, o EXPLORE e o VAX 004. A análise conjunta de todos os dados resulta numa eficácia média de 70% do preservativo na redução do risco de infecção de HIV em relações anais entre homens sero-discordantes. Mas os estudos não eram iguais. Num desses estudos interviu-se para reforçar junto de parte dos participantes o que são boas-práticas no uso do preservativo, algo simples de se fazer. O resultado após esta intervenção foi de uma eficácia média observada do preservativo de 87%. Mesmo assim, este resultado continua a incluir relações sexuais em que, apesar da intervenção, os participantes não cumpriram as melhores práticas de uso de preservativo. Se se conseguisse isolar apenas as relações em que houve boas práticas, o valor subiria, pensam os autores do estudo, para bem acima de 90%. De facto, em condições óptimas, laboratoriais, sabe-se que o preservativo tem uma eficácia, observada, muito superior a 90%. Mas da mesma maneira que a eficácia teórica de 99% para a PrEP é isso mesmo, teórica, também não uso o valor laboratorial da eficácia do preservativo mas sim o valor observado no terreno, apesar de nenhum estudo, pela sua dificuldade, ter alguma vez medido a eficácia quando apenas se estudam relações sexuais com boas práticas, o que na minha opinião levaria o valor da eficácia do preservativo para acima dos 95%. Mas a mensagem é muito simples: gaste-se tempo a explicar como deve ser usado o preservativo e este tem um valor de eficácia que, em estudos paralelos, não fica atrás ou é mesmo superior ao da PrEP.

"Os valores comparáveis de eficácia na prevenção individual de infecção entre a PrEP e o preservativo são iguais: 86% para a PrEP, 87% para o preservativo."

Temos então 86% de eficácia para a PrEP e 87% para o preservativo, mas em estudos diferentes. O que não conheço é um estudo que compare directamente o uso de apenas o preservativo e de apenas a PrEP, um ensaio clínico de superioridade ou não inferioridade que compare ambas as intervenções. Existem razões éticas para ser difícil fazer esse estudo, seria pouco ético recomendar aos participantes do braço da PrEP que propositadamente não usassem o preservativo quando se sabe que o uso do preservativo, isolado ou em conjunto, aumenta a prevenção. Mas só um estudo comparativo poderá alguma vez permitir afirmar que o preservativo é melhor ou pior que a PrEP na prevenção da infecção por VIH.

Que uma organização como o CheckPointLX decida comparar um valor conservador da eficácia do preservativo (70%) com um valor teórico, nunca observado, da eficácia da PrEP (99%) parece-me um ataque, repreensível, ao papel do preservativo na prevenção da transmissão do HIV e uma tentativa de inflacionar a eficácia da PrEP. Que o CPLX afirme, ainda, que para a prevenção do HIV a PrEP é superior ao preservativo sem que haja nenhum estudo a suportar tal afirmação é, no mínimo, questionável. Mas que o CPLX afirme que para prevenir o HIV chega a PrEP borda o negligente. A PrEP é um método complementar de prevenção e não um método alternativo.

"A PrEP apenas protege o próprio, o preservativo protege ambos os parceiros do acto sexual; quando há uma nova infecção - o que parece acontecer em pelo menos 14% dos homens que fazem PrEP - o preservativo continua a proteger os parceiros sexuais mas a PrEP não. Este efeito protector da comunidade faz com que o papel do preservativo na prevenção do HIV não seja substituível pela PrEP."

Parte da brochura da farmacêutica que produz a PrEP (Truvada) onde se escreve que a PrEP deve ser sempre associada ao uso do preservativo e que não substitui o seu uso na prevenção da infecção por VIH. É incrível que a farmacêutica seja mais cuidadosa a vender o seu produto que o CheckPointLX é a promovê-lo.


Note-se, ainda, que a PrEP apenas ajuda a proteger quem a toma, não dando protecção ao parceiro sexual. Já o uso do preservativo protege ambos os parceiros. Nos estudos feitos não foram avaliados quantos parceiros sexuais dos homens a fazer PrEP foram infectados quando o tratamento falhou. Porque quando a PrEP falha, todos os parceiros sexuais desse homem, se não for usado o preservativo, passam a ter um risco de infecção por VIH igual ao de uma relação sexual desprotegida. Mas quando um homem que usa o preservativo, ou faz com que usem, se infecta, se mantiver o uso do preservativo, continua a proteger os seus parceiros sexuais. Esta enorme diferença entre a mutualidade da protecção do preservativo e a protecção unilateral da PrEP é sempre esquecida. Como o preservativo também ajuda a prevenir a infecção com doenças sexualmente transmissíveis parece-me que o veredicto é claramente superior para o papel do preservativo na prevenção do HIV para a pessoa e comunidade.

Está o CheckPointLX pronto a assumir a responsabilidade de possíveis infecções resultantes de homens que, seguindo a sua opinião, tomem a PrEP em vez de usar o preservativo mas tenham a pouca sorte de fazer parte da percentagem de pessoas para quem a PrEP não resulta e se infectem com o HIV e transmitam o vírus a terceiros?

Apresentei acima algumas das razões porque considero este texto de promoção à PrEP enganoso e repreensível.


A pílula da Sida?

É interessante, mas enganador, que se compare a PrEP com a pílula anti-concepcional feminina. A comparação por parte dos promotores da PrEP, imagino, será no sentido de dizer que: - «Se a pílula evita a gravidez, a PrEP evita a infecção por VIH e ambas libertam o acto sexual do medo!».

Mas as diferenças são significativas. Na autonomia, por exemplo. As mulheres em idade fértil estão em desigualdade intrínseca no acto sexual com os homens, por serem as mulheres que engravidam. A pílula anti-concepcional dá liberdade sexual e reprodutiva às mulheres, e este aumento de autonomia sobrepõe-se largamente à pequena perda de autonomia associada com a necessidade de prescrição médica. Mas, tirando situações específicas, a PrEP apenas retira autonomia aos HSH, obrigando a prescrição e acompanhamento médico intenso, necessitando de análises e testes de diagnóstico regulares.

"A pílula anti-concepcional aumenta a autonomia das mulheres; a PrEP leva à dependência dos serviços de saúde e diminui a autonomia."

Ao mesmo tempo, as pílulas anti-concepcionais modernas - existem várias - são de tal modo seguras que podem ser usadas por uma larga maioria das mulheres que queiram, melhorando sintomas físicos da menstruação, por exemplo, e aumentando a qualidade de vida da mulher. Já a PrEP destina-se a reforçar a prevenção do HIV a um grupo restrito de pessoas que correm riscos elevados de infecção e não respondem a outras intervenções - social, médica, psicológica ou comportamental - para diminuir o seu perfil de risco. O seu uso não traz qualquer outra vantagem de saúde, pelo contrário, ao seu utilizador.

Por outro lado, os riscos que o falhanço da pílula acarretam – para o indivíduo a gravidez, para a população nenhum – em nada se comparam aos riscos que o falhanço da PrEP acarreta para o indivíduo e população, nomeadamente uma possível nova infecção de VIH e o potencial desenvolvimento de uma estirpe resistente, transmissível a terceiros e que acarreta riscos de falha do posterior tratamento da infecção para o próprio e na população. E enquanto a gravidez pode ser levada a termo ou interrompida, a infecção por HIV será sempre uma realidade para o resto da vida.

O uso da PrEP não deverá, por isso, ser o de uma droga recreacional em que cada um escolhe o que faz apenas porque acha que está em risco e antes de qualquer outro tipo de intervenção. Isto é muito diferente de achar que 80% dos HSH em Portugal cumprem os critérios para iniciar PrEP, como defende o CPLX, mais do que o triplo do que os 25% calculados nos EUA. No que a pílula e a PrEP são comparáveis é na associação que o uso da pílula tem com uma diminuição do uso do preservativo e com um aumento de doenças de transmissão sexual.

Parte da brochura da farmacêutica que produz a PrEP (Truvada) onde se nomeiam alguns factores que ajudam a identificar os indivíduos em elevado risco de contrair o VIH. Achar que 80% dos homens que têm sexo com homens cumprem algum destes critérios, como o CheckPointLX acha, é classificar os HSH como grupo de risco infeccioso elevado, dando razão a quem defende que não deviam poder doar sangue. Mas isto é uma falsa representação da generalidade dos HSH. 


Ensinar de forma cega a importar de forma ilegal anti-retrovirais é condenável e irresponsável.

Em Portugal existe acesso universal à medicação anti-retroviral para pessoas infectadas e um crescente acesso à profilaxia pós-exposição. Que eu conheça, não existe uma situação generalizada de discriminação no acesso a estes tratamentos e não existem pessoas a morrer por lhes ter sido negado acesso a fármacos anti-retrovirais. Ao mesmo tempo, existem em Portugal autoridades de saúde e do medicamento a funcionar de forma regular, incumbidos de proteger a população, avaliar que fármacos podem ser usados para o quê, por quem e quando, não só por questões de segurança mas também por questões de preço, justiça e igualdade de todos perante os serviços de saúde.

Se se valoriza o facto de em Portugal o acesso à terapia anti-retroviral ser universal e gratuito, então é estranho que se invoque o argumento que a FDA autorizou o uso do Truvada como PrEP em 2012 para tentar acelerar a sua aprovação. De referir que a FDA aprovou a PrEP como método complementar a práticas de sexo seguro junto com aconselhamento para redução de riscos e não como método alternativo.

A FDA aprovou a PrEP nos EUA como método complementar ao uso do preservativo e aconselhamento de redução de risco e não como método alternativo, como defende o CPLX.


Mas nos EUA, a FDA não tem que ter em conta o acesso das pessoas a um medicamento para o aprovar, apenas considera a sua segurança e eficácia, e nem todos têm acesso à medicação, muito menos de forma gratuita. Em Portugal, a aprovação da comercialização de medicamentos também inclui uma avaliação terapêutica e económica. O novo medicamento - ou novo uso, neste caso - tem que provar que não é inferior a alternativas pré-existentes e é decidida a comparticipação pelo Estado. É um processo mais moroso mas mais justo. Eu, pelo menos, não queria ter de viver no sistema de saúde dos EUA, por muito rápido que seja a aprovar novos medicamentos. Querer copiar o sistema americano é achar aceitável que milhares de pessoas fiquem sem acesso à medicação.

Face ao exposto, não compreendo como se pode justificar que se incentive abertamente que quem queira importe fármacos ilegalmente para o país, sem qualquer triagem sobre a quem se dá a informação de como o fazer. Falamos de fármacos que não são inócuos e que têm impacto não só em quem os utiliza mas na comunidade em geral e cujo nível de benefício não está estabelecido. A sua utilização e seguimento médico pelo CheckPointLX acarreta também uma alocação de recursos desproporcional a estes utilizadores, com testes regulares de diagnóstico, consultas, em prejuízo dos outros, os recursos não são infinitos. É uma alocação extra de recursos a pessoas que usam a sua capacidade financeira superior para importar uma medicação que apenas está ao alcance de alguns, garantindo que ainda mais recursos nacionais sejam gastos com eles. É um comportamento poucas vezes justificável.

Não estou a defender que se fuja da realidade de haver quem já faça e se queira tentar garantir a melhor utilização possível. Mas acompanhar quem já faz é diferente de tentar angariar novos utilizadores, afirmar que a PrEP se adequa a 80% dos HSM em Portugal e ensinar a importar ilegalmente. Mas o dinheiro público que financia o CheckPointLX não pode ser alocado em prejuízo de quem não tem recursos para encomendar a PrEP. Não quer dizer que isso não se justifique em alguns casos, mas carece de avaliação médica integrada e não pode ser a pessoa a escolher livremente. Ao mesmo tempo, o CheckPointLX não consegue garantir a continuidade de tratamento a estas pessoas, nem a continuidade de seguimento. Parece-me irresponsável incentivarem o uso da PrEP quando não estão garantidas estas condições.

No CheckPointLX decidiu-se ultrapassar todas as autoridades competentes e não o fizeram caso a caso, não informaram de forma discreta, individualmente, pessoas que cumprissem critérios pré-definidos. Não, decidiram que era apropriado publicar abertamente como qualquer um, sem critério médico, porque sim, poderia importar e começar a tomar fármacos de dispensa médica obrigatória, ignorando os perigos para os próprios e para terceiros e sem explorar alternativas. Trata-se de uma forma de actuar que considero injustificável, baseado em evidência científica que, apesar de positiva, ainda é escassa e de curta duração.

"Tomar a PrEP não é uma decisão puramente individual porque a sua toma tem riscos para a comunidade. Não existe um direito inalienável a tomar a PrEP."

É verdade que os fármacos que constituem a PrEP têm um perfil de segurança farmacológica aceitável, quando usados em pessoas infectadas por HIV, em risco de desenvolverem SIDA e morrerem. Mas em pessoas saudáveis, a decisão de iniciar uma combinação de dois fármacos carece sempre de uma ainda mais cuidadosa análise de risco. Será que já se esgotaram todas as possíveis forma de ajudar aquela pessoa a diminuir o seu risco para HIV antes de se iniciar a PrEP? Que tipo de intervenção necessita a pessoa? Tem um problema de drogas de abuso? Está deprimida? Será que a pessoa precisa de facto ou tem um medo desproporcionado de se infectar face aos seus comportamentos? Não é só porque é muito mais barato não tomar a PrEP, mas porque evitar o uso da PrEP é muito mais seguro, do interesse da pessoa e da comunidade.

Quer-se-ia imaginar que uma decisão tão avassaladora como ensinar a importar ilegalmente fármacos e incentivar de forma indiscriminada o seu consumo fosse baseada em evidência científica inquestionável; que os impactos de tomar a PrEP tinham sido estudados de forma exaustiva durante um longo período de tempo em vários grupos populacionais, que o impacto epidemiológico tinha sido avaliado e considerado aceitável e que as condições dos estudos se reproduziam em Portugal. Mas não é o caso.

Como já referido, o uso da PrEP poderá ter consequências para a saúde pública que vão além do indivíduo. Assim como o uso e abuso de antibióticos é um tema na ordem do dia, devido ao desenvolvimento de microorganismos resistentes, e não existe um direito inalienável a tomar antibióticos, o uso de anti-retrovirais em pessoas não infectadas acarreta igualmente o risco de desenvolvimento de estirpes resistentes de VIH. É importante por isso perceber qual o impacto na população em geral de ter indivíduos a tomar PrEP, competências que não reconheço ao CheckPointLX que decidiu por todos nós que em Portugal podia-se fazer PrEP e em larga escala.

De facto, têm sido reportadas algumas resistências do VIH aos fármacos da PrEP em pessoas a fazer esta medicação. Até agora têm sido em número muito reduzido, mas reais. Quando consideramos que os estudos tiveram seguimentos de 1 ano, em geral, é justo dizer que sobre a questão das resistências ainda a procissão vai no adro. Mas o que quero transmitir é que a PrEP tem o potencial de ter consequências de saúde pública além do indivíduo e a decisão de disponibilizar a PrEP não pode ser tomada sem que o impacto na saúde pública seja avaliado. Não existe um direito inalienável a tomar um fármaco cujo o uso tem consequências na população. Isto é válido para antibióticos e é válido para anti-retrovirais, razão pela qual muitos antibióticos e anti-retrovirais são de dispensa hospitalar controlada.

No que toca a resistências, as análises até agora efectuadas favorecem o uso da PrEP em situações específicas, mas é uma decisão que carece de aconselhamento prévio. Por exemplo, se uma pessoa está infectada com uma estirpe resistente a um dos fármacos da PrEP, o seu companheiro não será protegido pela PrEP. Esta situação, ainda rara, já aconteceu. E é por isso que a decisão de tomar PrEP não pode ser tomada levianamente e devia ser isto que o CheckPointLX deveria reforçar em vez de promover o seu uso generalizado.

O aumento da incidência de doenças de transmissão sexual (DST) também é um potencial problema com a disponibilização da PrEP. Note-se, por exemplo, que a gonorreia multi-resistente aos antibióticos é uma das doenças cujo agente, a bactéria Neisseria gonorrhoeae, incorpora a lista de bactérias multi-resistentes da Organização Mundial de Saúde de 2017. Ambos os estudos PROUD e IPERGAY reportaram altas taxas de infecções sexualmente transmissíveis nos homens que participaram, embora não tenham reportado um aumento. Esta taxa de infecção base não é de estranhar quando consideramos que a população recrutada em ambos os estudo era uma população de alto risco que tinha relações sexuais anais sem preservativo nos 3 ou 6 meses anteriores ao início dos estudos. Mas a infecção com uma DTS aumenta, por si, o risco de infecção por HIV. Desta forma, a prevenção do HIV necessita também da prevenção das DTS e o preservativo tem que ser sempre parte desta equação.


Não é a PrEP a medicalização do sexo?

Para a comunidade LGBT em Portugal a autonomia com que vivemos a nossa vida tem sido conquistada, pouco a pouco, mas com bons resultados. Penso que é seguro dizer que nunca fomos tão autónomos como agora, somos cada vez mais livres para viver a nossa vida de forma independente, sem supervisão do Estado. Mas a PrEP é uma cedência de autonomia; será uma boa opção médica para algumas pessoas, mas tem custos e a autonomia da vida sexual é um deles.

Quem toma a PrEP deve ser seguido medicamente de uma forma relativamente intensa, como se estivesse doente. Aliás, a PrEP é isso mesmo, a medicalização do sexo, a necessidade de tomar um medicamento para ter relações sexuais, é passar a estar dependente na sua vida sexual de médicos, enfermeiros e farmacêuticos. Não é uma libertação, como se quer fazer querer. É um caminho que deve ser tomado com muita ponderação. Mas, sejamos honestos, é um retrocesso, é olhar para a vida sexual dos HSH como uma patologia, como uma doença.

Imaginar que 80% dos HSH em Portugal passariam a tomar a PrEP é dizer que se concorda que os HSH são um grupo de risco para o HIV e devem continuar, por exemplo, a ser impedidos de doar sangue. É difícil defender, ao mesmo tempo, o fim da exclusão à doação de sangue e o acesso da PrEP a 80% dos homens que têm sexo com homens.


A minha opinião sobre a PrEP

Se a avaliação das autoridades de saúde à PrEP for positiva, como parece que vai ser, penso que é um avanço contar-se com mais esta arma na prevenção da infecção por VIH. Mas considero que a disponibilização de PrEP não é necessária para a esmagadora maioria de homens que têm sexo com homens para viverem a sua sexualidade em segurança.

A disponibilização de PrEP apenas deve ser feita a pessoas que não conseguem controlar os seus comportamentos de risco de forma contínua e correm um elevado risco real de infecção. Estamos a falar de pessoas em relações sero-discordantes, trabalhadores do sexo, reclusos, toxicodependentes ou viciados em sexo (sem autonomia face ao vício e diminuídos na capacidade de decisão) ou outras pessoas que, por alguma razão, sejam incapazes de controlar os seus comportamentos de risco. Para estes, a PrEP deve ser ponderada como um complemento na estratégia de prevenção numa avaliação médica individual de prós e contras. Já a vontade de não usar preservativo não é uma razão válida e não deve ser encorajada, assim como o medo da infecção, por si, não é uma razão válida, nem o é ser-se atleta sexual.

O vício do sexo é um comportamento auto-lesivo e não deve ser facilitado sem a oferta de acompanhamento psiquiátrico, como é feito quando um dependente de heroína tem acesso a terapia de substituição com metadona. Quem tenha dificuldade em controlar os seus comportamentos e se expõe repetidamente a comportamentos de risco elevado, seja por baixa auto-estima, por homofobia internalizada, por depressão, por viver no armário ou isolado, por vício ou procura do risco, então é minha opinião que precisa de ajuda e deve procurar ajuda. A PrEP poderá, nestas situações, ser parte de uma abordagem integrada.

O que não é aceitável, para mim, é ter expectativas de poder tomar-se uma combinação de fármacos, com riscos para o próprio e para a população, sem a aplicação de qualquer critério médico e de saúde pública, sem que a PrEP seja parte de uma estratégia médica integrada de redução de risco e sem acompanhamento médico contínuo assegurado. Fazer isto ou defender isto é repreensível e irresponsável. E querer isto, como se fosse um direito inato, sem condições, deve ser desafiado.

De igual modo, não me parece ser normal precisar de tomar PrEP para ter uma vida sexual satisfatória. Quem se expõe a riscos excessivos deverá receber ajuda para perceber o porquê desses riscos e para conseguir evitá-los. Existe uma diferença entre julgar moralmente uma pessoa por ter relações deprotegidas com múltiplos parceiros sexuais que desconhece e dizer que isso é normal. Não é; para a grande maioria dos envolvidos será um comportamento auto-lesivo, um sinal de que a pessoa não está bem, e deve-se ajudar a compreender as causas dos comportamentos de alto risco e tentar resolver essas causas.

"O preservativo continua a ser a mais importante forma de prevenir a infecção por VIH, pela disponibilidade universal, pelo efeito duplo de protecção de ambos os parceiros sexuais, pelo efeito complementar de prevenção de outras doenças de transmissão sexual e pela autonomia que dá às pessoas. A PrEP pode, em algumas situações, ser adicionada ao preservativo, mas não substituí-lo."

Não deixa de ser curioso que, como referi, o CPLX tenha começado por atacar a eficácia do preservativo como método de prevenção da infecção por VIH para tentar aumentar o perfil da PrEP. Mas é minha opinião que a PrEP actual nunca poderá ou deverá substituir o preservativo como forma de prevenção, excepto em condições limites de perda de autonomia de algum dos intervenientes no acto sexual. O preservativo continua a ser a mais importante forma de prevenir a infecção por VIH, pela disponibilidade universal, pelo efeito duplo de protecção de ambos os parceiros sexuais, pelo efeito complementar de prevenção de outras doenças de transmissão sexual e pela autonomia que dá às pessoas; quando o preservativo falha, pode-se recorrer à profilaxia pós-exposição e, quando há uma nova infecção, esta não terá sido seleccionada para ser resistente não se tornando mais perigosa do que aquilo que era. A PrEP pode ser adicionada ao preservativo, mas não substituí-lo.

É minha opinião que o grande problema da prevenção da infecção por via sexual de VIH em Portugal continua a ser a falta de adesão ao uso do preservativo, estando o país nos últimos lugares da Europa. É nesta área que a intervenção continua a ser urgente. Que numa população com este problema base, e falta de recursos para esta luta, se esteja a querer banalizar a PrEP - 80% dos HSH é banalizar - é, para mim, totalmente irresponsável. A complementaridade, em circunstâncias específicas, não é a mesma coisa de ser uma alternativa para todos os que consideram estarem em alto risco porque não usam sempre o preservativo. A aposta para a população em geral deve continuar a ser aumentar o uso correcto do preservativo e a análise de risco não pode ser deixada ao próprio mas tem de ser sistematizada e considerar necessidades populacionais e não só individuais. Infelizmente, as acções do CheckPointLX estão a contribuir para criar falsas expectativas em relação à PrEP e contribuir para o aumento ilegal do seu uso.

Escrevi este texto porque considero importante uma discussão mais aprofundada sobre o que está em causa com a PrEP e porque considero ser um mau serviço aos homens que têm sexo com homens facilitar os seus comportamentos de risco sem que isso seja parte de uma abordagem médica integrada. Como não existe ainda um conjunto de estudos de longo prazo que permitam ter certezas sobre as vantagens e desvantagens da PrEP, é necessário cautela naquilo que se defende e não manipular a informação. Achei, pelas razões apresentadas, importante expor a minha opinião sobre esta questão e denunciar a actuação do CheckPointLX nesta área, actuação essa que considero lesiva para o interesse individual e colectivo dos homens que têm sexo com homens em Portugal.

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